domingo, 25 de março de 2012

Vísceras posto à vista pelo Cântico Negro





Cântico Negro
José Régio


"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
--- Sei que não vou por aí.

sábado, 24 de março de 2012

Rainhas e Ratazanas



À medida em que se vive o ser humano adota distintos significados e objetivos na vida. Ao sair em busca da sensação de completude, do êxito que premiará singulares desafios criamos roteiros desiguais para escrever nossas histórias. Alguns escolhem a luz para guiar o caminho, enquanto outros preferem rastejar-se por sombras. Inigualáveis criaturas que jamais se tornaram semelhantes enquanto metanarrativa. Ao planejar botes, desenhar a melhor estratégia, avançar por paralelos que levem em passo acelerado um caçador até a caça, a de se considerar o mínimo decoro. A escolha por estradas marginais pode significar o fio da navalha até mesmo para espécies hábeis em locomover-se em ambientes totalmente escuros e escorregadios, como bem fazem as ratazanas. A sensação de triunfo e glória nasce (i)restritamente de uma conduta pautada por honradez, nobreza, dignidade, decência e elegância. Tal desempenho não pode ser adquirido por meio de livros ou nos laboratórios das Faculdades. Trata-se de algo orgânico e inerente a determinados seres nascidos sob o decreto de caráter pessoal e original, seres com personalidade constituída. Leonor da Aquitânia foi Duquesa da Aquitânia e da Gasconha, Condessa de Poitiers e Rainha Consorte da França e Inglaterra. Viveu entre os anos de 1122 e 1204, mas, a cultura que ela ajudou a implantar instituiu alicerces de uma filosofia de vida que permanece até hoje. Ironicamente o conceito de “amor cortês” foi introduzido por Leonor nas cortes da Europa, por sua “ãturráge” (conjunto de pessoas que está habitualmente junto de outra, em especial no meio político; círculo). Conforme narrou Helena Vasconcelos, "durante os anos que permaneceu na Corte Francesa como Rainha Consorte, ela introduziu mudanças significativas promovendo o gosto pelo luxo e o culto do prazer. Desenvolveu a noção de “moda” impondo o seu gosto, quando no vestuário surgiram os decotes generosos, as “corsages” que realçavam as formas femininas em vez de ocultá-las, despindo os ombros e a parte superior dos seios". Uma figura de mulher que se destacou ao propor uma mudança radical das mentalidades e dos costumes. Por outro lado, os mesmos castelos que resguardavam tão gloriosas rainhas também abrigavam miseráveis ratazanas. Uma espécie pouco favorecida pela sorte, contudo capaz de penetrar em qualquer abertura. Aprendeu a viver próximo ao ser humano e a tirar proveito das mudanças realizadas no ambiente. Enquanto as rainhas desfrutam dos prazeres de uma mesa farta, à espreita ratazanas aguardam os restos e as migalhas que caem no chão. A natureza é sábia quando assegura: um dominado só se alimenta quando um dominante não está por perto. Atribuem a isto o fato de rainhas viverem décadas, enquanto pobres ratazanas duram no máximo cerca de dois anos. Em grandes cidades, podem viver em esgotos e dentro de casas. São descobertas porque deixam marcas pelo caminho, "linhas contínuas formadas entre suas pegadas ao arrastar sua cauda pelo chão." As ratazanas até servem como recicladoras de matéria orgânica, além de participar da cadeia alimentar de outros animais, mas, como sua população pode atingir altos níveis e trazer sérios riscos à saúde, torna-se necessária certa atenção sob sua proliferação. De fato, algumas criaturas nascem para servir-se do inédito, do extraordinário, enquanto outras comemoram as sobras e entulhos que conseguem juntar pelo caminho. E assim, o lixo descartado por umas se (re)constitui em luxo para outras.



Referências:
http://blogdaspragas.blogspot.com.br/
http://www.storm-magazine.com/arquivo/ArtigosDez_Jan/Artes/a_fev_marco2002_1a.htm

sexta-feira, 16 de março de 2012

Ao seu alcance


Imagem da lua que meus olhos alcançaram há dias atrás. Imediatamente me transportei para a década de 60 acompanhada por uma obra de classe: a canção Moon River na voz de Henry Mancini. Dancei de rostinho colado e depois rodopiei com o vento feito bailarina na ponta dos pés. Há melodias que nos conduzem com maestria para outras dimensões. Quase uma apologia à alienação, a tal ponto que futuro e passado acabam por se confluir em um só instante. 


  
Link Moon River:http://www.youtube.com/watch?v=5xGpam9_NpI&feature=fvwrel

Peculiar aos felinos




Gato é mesmo um bicho pra lá de irresistível simplesmente sem ter que fazer nada pra isso. Genuinamente elegante, sua carne peluda combina propositalmente com uma almofada de veludo bem macia, algo distante de um mero "tapetinho". Gostam de ser recebidos com muita pompa e circunstância, sua presença é sempre motivo de alegria, já que poucos são os eleitos para desfrutar de sua valiosa companhia. São eles que selecionam conforme sua preferência, com quem e onde se aninhar, e, nem adianta tentar forçá-los, “tinhosos” como poucos o seu desejo é que prevalece. Anunciam sua chegada com um olhar fulminante, o suficiente para garantir uma comunicação quase magnética. Com um andar malemolente e sem o mínimo pudor deslizam seu rabo pelas pernas do dono dando por certo, que terão seus desejos atendidos prontamente.  Maktub! São de pouquíssima ou quase nenhuma intimidade, seres completamente independentes, compactuam minimamente do comportamento canino de dependência afetiva. Esses peludos sedutores não mendigam afeto. E mais, recusam-se a serem contrariados e não fazem qualquer questão de esconder. Em razão de possuírem uma percepção altamente aguçada chegam a farejar más intenções. Blindado por seus mistérios é possível crer que os bichanos tenham outro sentido, uma percepção que nós, simples mortais, absolutamente não conseguimos alcançar. Ariscos que são dificilmente serão surpreendidos, afinal, gato que é gato não dá bobeira mesmo contando com mais seis vidas de lambuja. Está na hora de prestarmos mais atenção nesses bigodudos delicadamente atrevidos, sedutores e excessivamente charmosos, esses bichanos definitivamente fazem de seus senhores gato e  sapato.  

sábado, 10 de março de 2012

Um fruto




Disse o poeta Octávio Paz: “Sou a criatura do que vejo”.
O prazer em ser espectador do entardecer nos desperta poesia...
Não tens o fruto do cajueiro, o caju, a cor do pôr-do-sol?
Assim como nossos sentimentos cores que se misturam ao entardecer.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Um eco na história

A criação deste espaço coincidiu com uma data pra la de especial para nós, mulheres, o dia 08 de março. Fruto da luta de algumas corajosas representantes do sexo ‘frágil’ o dia internacional das mulheres clama um reconhecimento social e profissional, somados ao processo de construção de uma identidade feminina. Assim, não havia melhor pauta para inaugurar um ambiente destinado a debates e reflexões em torno dos aspectos relativos a esse universo.
No início do século XX nos Estados Unidos e na Europa, por motivos justos e urgentes algumas destemidas representantes do gênero iniciaram uma luta por condições dignas de trabalho e direitos sociais para as mulheres. A reivindicação era pelos primeiros direitos que a mulher acabou por conquistar, entre eles o direito à educação, profissão e ao voto. Deste modo, quando a indústria absorveu a mão de obra feminina em maior escala durante a Segunda Revolução Industrial, já na virada do século XX, as perigosas condições de trabalho motivaram protestos de operárias em diversas partes do mundo com evidência nos Estados Unidos, Alemanha, Áustria e na Rússia. Desde então, diversos episódios narram grandes embates sociais como reflexo de afrontas necessárias às conquistas que se sucederam. Chega parecer simpático um cartaz soviético que anunciava em 1932; “Diga NÃO à opressão e ao conformismo do trabalho doméstico!”.  

Dias atrás, ao organizar minha tímida biblioteca particular (re)encontrei um exemplar organizado em 1972, por Frei Urbano Plentz, o título imediatamente vibra curiosidade: Curso de Masculinidade e Feminilidade. Em certo capítulo, discute-se a trajetória da mulher na história da humanidade, e assim descobri o que ecoou nas palavras de Pitágoras a respeito das mulheres; “existe um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, a escuridão e a mulher”. Na civilização grega a mulher não era aceita na sociedade, coagida permanecia no gineceu (aposento destinado às mulheres com o propósito de segregá-las do convívio masculino na sua própria família). Avaliada pela Política de Aristóteles, a mulher era um ser inferior por não possuir o Logos, (parte racional da alma feminina). Já Santo Agostinho, expressando a ideia de sua época apresenta a mulher como escrava do homem: “Consta que a mulher está destinada a viver sob o império do homem e não pode ter sobre seu senhor nenhuma autoridade”. Na idade média, Santo Tomás retoma as ideias da filosofia grega: “A mulher é um homem diminuído. Não é a mãe que engendra aquele que chamamos o seu filho. Ela é apenas a nutriz do germe derramado em seu seio e quem engendra é o pai”.

Sob o olhar de Mary Douglas, havia uma relação entre a mulher e o maléfico, explicitado nitidamente por Kramer e Sprenger como algo próprio à cultura judaico-cristã, uma relação sobrenatural satânica por meio de cerimonias orgásticas (Sabbat) realizadas nas florestas a partir do século XV. Já nas primeiras décadas do século XX, nasce o movimento do feminismo. De 1939-1950 cria-se a “sociedade do consumo” e uma gigantesca propaganda é veiculada objetivando a “volta da mulher ao lar”. De 1950-1960 foi construída a imagem da mulher sexy com cabeça oca. As moças eram educadas para tornarem-se “caçadoras de homens”, foi quando uma revista de destaque na época direcionou uma propaganda para meninas de 10 anos: “Ela também pode torna-se caçadora de homens”. Já nas décadas de 1960-1970 a mulher não mais queria ser a boneca sexy, nem a mãe sacrificada e assexuada, foi quando descobriu que estava desesperadamente separada do homem. Em decorrência de tamanhas construções e (des)construções da imagem feminina, o homem dividiu a imagem da mulher em mãe assexuada (supermãe) e a prostituta, instrumento de prazer e especialista em todos os pecados da carne. De tal modo que optou por não se entregar a nenhuma delas, até porque se descobriu implacavelmente só.

Por fim, Frei Urbano finaliza sua obra ao citar a tese de Rose Marie Muraro; nossa sociedade é esquizofrênica e dividida entre “schizo”, que significa partir e “phrenos”, que significa alma, há divisão de classes e sexos, há sempre uma divisão entre “dominante e dominado”. O caminho para uma possível solução exige principalmente assumir a esquizofrenia, isso supõe uma conscientização da situação da mulher e um questionamento de si mesma. Depois vem a superação do dualismo na reunificação do homem com ele mesmo. Segundo Muraro, o ser andrógino é uma verdadeira resolução das neuroses e conflitos, principalmente a respeito de nossas percepções, sobre nosso corpo e o corpo do outro. A palavra androginia é de origem grega, composta dos termos: aner, andros homem e gune, gunaicos, mulher. O ser andrógino seria uma espécie de ser total na ideia do filósofo Platão, um ser que existiu no principio composto por duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Assim, eram considerados seres tão fortes que chegavam a constituir ameaça aos Deuses do Olimpo, e por isso Júpiter enciumado, resolveu o problema cortando-os ao meio. Dessa forma, passariam a eternidade tentando se juntar novamente e não mais atrapalhariam os Deuses.

E quanto à mulher de hoje? As que possuem o mesmo ethos político permanecem em busca da efetivação do reconhecimento social e profissional, uma contestação à hipocrisia que ainda nos cerca em uma redoma. Mudanças e uma longa caminhada nos aguardam no horizonte. Não se trata de uma guerra de gêneros, mas sim, do reconhecimento de um vácuo da participação feminina sub-representada politicamente nos canais de acesso ao poder. O escritor francês Laforgue disse na década de 70: “Até agora brincamos de bonecas com as mulheres; mas já faz tempo demais que isso dura. Moças, quando serão vocês nossas irmãs íntimas, sem segundas intenções de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de mão”? Passadas quatro décadas de tal indagação, um cenário hipócrita ainda permite o mesmo questionamento: Moças, quando seremos nós irmãs íntimas de gênero, sem segundas intenções de exploração?